4. A PALAVRA DE ANGÚSTIA
“E perto da hora nona exclamou
Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lama sabactani; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Mateus 27.46
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
ESSAS SÃO PALAVRAS DE CHOCANTE
IMPORTÂNCIA. A crucificação do Senhor da glória foi o mais extraordinário
evento que já aconteceu na terra, e esse brado do padecente foi a mais
extraordinária expressão daquela aterradora cena. Que um inocente fosse
condenado, que o sem culpa fosse perseguido, que um benfeitor fosse cruelmente
sentenciado à morte, não era nenhum acontecimento novo na história. Do
assassínio do justo Abel àquele de Zacarias houve uma longa lista de martírios.
Mas aquele que pendurado estava na cruz do centro não era nenhum homem comum,
era o Filho do Homem, aquele no qual todas as excelências se encontravam — o
Perfeito. Seu caráter era como sua túnica, “tecida toda de alto a baixo, [e]
não tinha costura”.[1]
No caso dos outros maltratados havia
deméritos e manchas que poderiam proporcionar aos seus assassinos algo com que
culpá-los. Mas desse o juiz falou: “Não acho nele crime algum”.[2]
E mais. Esse Sofredor não era apenas um
homem perfeito, mas o Filho de Deus. Todavia, não era estranho que o homem
quisesse destruir Deus. “Disse o néscio no seu coração: Não há Deus” (Sl 14.1),
tal é o seu desejo. Mas é estranho que aquele que era Deus manifestado na carne
devesse permitir a si mesmo ser assim tratado por seus inimigos. É extremamente
estranho que o Pai que se deleitava nele, cuja própria voz declarara dos céus
abertos, “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”, devesse entregá-lo a
uma morte tão vexaminosa.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
Essas são palavras de estarrecedora
miséria. A própria palavra “desamparaste” é uma das mais trágicas em todas as
línguas humanas. O escritor jamais se esquecerá da sensação que teve ao passar
uma vez por uma cidade deserta, sem habitante algum — uma cidade desamparada.
Que calamidades são conjuradas por tal palavra — um homem desamparado de seus
amigos, uma esposa desamparada de seu marido, uma criança desamparada por seus
pais! Mas uma criatura desamparada por seu Criador, um homem desamparado de
Deus — Ó, isso é o mais horrendo de tudo. Esse é o mal dos males. Isso é a
calamidade climatérica. Verdade, os homens caídos, em sua condição não
renovada, não o acham. Mas aquele que, pelo menos em certa medida, aprendeu que
Deus é a essência de toda perfeição, a fonte e a meta de toda excelência, cujo
clamor é “Como o cervo brama pelas correntes das águas, assim suspira a minha
alma por ti, ó Deus!” (Sl 42.1), prontamente endossará o que acaba de ser dito.
O clamor dos santos em todas as eras tem
sido, “Não nos desampare, ó Deus”.[3] Pois o Senhor esconder sua face de nós
por um momento que seja é insuportável. Se isso é verdade quanto aos pecadores
regenerados, quão infinitamente mais o é quanto ao Filho amado do Pai!
Aquele que estava pendurado no madeiro
maldito tinha sido desde toda eternidade o
objeto do amor do Pai. Empregando a linguagem de Provérbios 8, o Salvador padecente
era aquele que “estava com ele e era seu aluno”, que estava “cada dia as suas delícias”.
objeto do amor do Pai. Empregando a linguagem de Provérbios 8, o Salvador padecente
era aquele que “estava com ele e era seu aluno”, que estava “cada dia as suas delícias”.
Seu próprio gozo fora contemplar a face do
Pai. A presença do Pai fora seu lar, o seio do Pai o lugar de sua habitação, a
glória do Pai ele compartilhara antes que houvesse o mundo. Durante os trinta e
três anos que o Filho estivera na terra ele desfrutara de comunhão ininterrupta
com o Pai. Nunca um pensamento que estivesse fora da harmonia com a mente do
Pai, nunca uma volição que não fosse originária da vontade do Pai, nunca um
momento que fosse passado fora de sua presença consciente. O que então deve ter
significado estar por ora “desamparado” por Deus! Ah, o ocultamento da face
divina dele foi o mais amargo ingrediente daquele copo que o Pai tinha dado ao Redentor
para beber:
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
Essas são palavras de inigualável
sentimento. Elas marcam o clímax de seus sofrimentos. Os soldados haviam
cruelmente zombado dele: enfeitaram-no com a coroa de espinhos, tinham-no
açoitado e esbofeteado, tinham até chegado a ponto de cuspir nele e arrancar
seus cabelos. Despojaram-no de seus vestidos e o expuseram a uma vergonha
explícita. Todavia, sofreu tudo isso em silêncio. Perfuraram suas mãos e seus
pés, porém suportou a cruz, a despeito da ignomínia. A multidão vulgar
escarnecia dele, e os ladrões com ele crucificados lhe lançavam em rosto os
mesmos insultos; todavia, não abriu sua boca. Em resposta a tudo que sofria das
mãos dos homens, nenhum clamor escapou de seus lábios. Mas agora, quando a ira
concentrada do céu desce sobre si, ele exclama: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” Seguramente, esse era um clamor que deveria enternecer o mais
duro coração!
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
Essas são palavras do mais profundo
mistério. Outrora o Senhor Jeová não abandonava seu povo.
Repetidamente ele foi seu refúgio na
tribulação. Quando Israel esteve em cruel servidão clamou a Deus, e ele o
ouviu. Quando ficou impotente diante do Mar Vermelho, ele veio em seu auxílio e
o livrou de seus inimigos. Quando os três hebreus foram lançados dentro da
fornalha de fogo, o Senhor esteve com eles. Mas daqui, da cruz, sobe um clamor
mais dorido e agonizante do que jamais subira da terra do Egito, entretanto,
não ouve resposta alguma! Eis aí uma situação de longe mais alarmante do
que a crise do Mar Vermelho: inimigos mais implacáveis cercaram esse, e no entanto não houve livramento algum! Eis aí um fogo que ardia infinitamente mais do que o da fornalha de Nabucodonosor, mas sem ninguém ao seu lado para confortar! Ele é abandonado por Deus!
que a crise do Mar Vermelho: inimigos mais implacáveis cercaram esse, e no entanto não houve livramento algum! Eis aí um fogo que ardia infinitamente mais do que o da fornalha de Nabucodonosor, mas sem ninguém ao seu lado para confortar! Ele é abandonado por Deus!
Não obstante, esse clamor do Salvador
padecente é profundamente misterioso. De início clamou, “Pai, perdoa-lhes,
porque não sabem o que fazem”, e isso podemos compreender, pois está em boa
conformidade com seu coração compassivo. Outra vez abrira ele sua boca, para
dizer ao ladrão penitente, “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no
Paraíso”, e isso também podemos entender bem, pois está totalmente de acordo
com sua graça para com os pecadores. Uma vez mais seus lábios se moveram — para
sua mãe, “Mulher, eis aí o teu filho”; para o amado João, “Eis aí tua mãe” — e
isso também podemos apreciar. Porém, na próxima vez em que ele abre sua boca,
um brado nos faz ficar sobressaltados e desconcertados. Outrora disse Davi,
“Nunca vi desamparado o justo”,[4]
mas aqui vemos o Justo desamparado.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
Essas são palavras da mais profunda
solenidade. Esse foi um clamor que fez a própria terra estremecer, e que
reverberou por todo o universo. Ah, que mente é suficiente para contemplar essa
maravilha das maravilhas! Que mente é capaz de analisar o sentido desse
estupendo clamor que rasgou as trevas medonhas! “Por que me desamparaste?” são
palavras que nos conduzem para dentro do Santo dos Santos. Aqui, se é que não o
é assim também em todo lugar, é supremamente conveniente que removamos os
sapatos da curiosidade carnal. As especulações são profanas; podemos apenas nos
maravilhar e adorar.
Mas, embora tais palavras sejam de
importância chocante, de assustadora miséria, do mais profundo mistério, de
singular sentimento, e de profunda solenidade, entretanto, não somos deixados
em ignorância quanto ao significado. Verdade, tal clamor foi profundamente
misterioso, todavia, é capaz da mais abençoada solução. As Escrituras Sagradas
não deixam margem para dúvidas de que tais palavras de inigualável tristeza
foram tanto a mais completa manifestação do amor divino e da mostra mais
inspiradora de terror da inflexível justiça divina. Possa todo pensamento ser
agora trazido cativo a Cristo e nossos corações ficarem devidamente graves
enquanto analisamos mais de perto esse quarto pronunciamento do Salvador
agonizante.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
1. Aqui vemos a enormidade do pecado e o
caráter de seu salário.
O Senhor Jesus foi crucificado ao
meio-dia, e na luz do Calvário tudo foi revelado em seu verdadeiro caráter.
Ali, a própria natureza das coisas foi plena e finalmente exibida. A depravação
do coração humano — seu ódio por Deus, sua ingratidão abjeta, seu amor às
trevas no lugar da luz, sua preferência por um assassino no lugar do Príncipe
da vida — foi horrivelmente mostrada. O terrível caráter do diabo — sua
hostilidade contra Deus, sua insaciável inimizade contra Cristo, seu poder de
pôr no coração do homem a traição ao Salvador — foi plenamente exposta. Assim,
também, as perfeições da natureza divina — a inefável santidade de Deus, sua
justiça inflexível, sua ira terrível, sua graça sem par — foi de todo
conhecida. E ali também foi que o pecado — sua vileza, sua torpeza, sua não
sujeição a leis — foi claramente exibido. Aqui nós vemos a horrenda extensão a
que o pecado chegará. Em sua primeira manifestação ele tomou a forma de
suicídio, pois Adão destruiu sua própria vida espiritual; em seguida o vemos em
forma de fratricídio — Caim matando seu próprio irmão; mas na cruz o clímax é
atingido, com o deicídio — o homem crucificando o Filho de Deus.
Porém, não apenas vemos a hediondez do
pecado na cruz, mas ali também descobrimos o caráter de seu horrível pecado. “O
salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). A morte é a herança do pecado. “Por um
homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte
passou a todos os homens por isso que todos pecaram” (Rm 5.12). Não houvesse
pecado nenhum, não haveria morte alguma. Mas o que é “morte”? É aquele pavoroso
silêncio que reina supremo após se dar o último fôlego e o corpo ficar sem movimentos?
É aquela cadavérica palidez que vem sobre a face quando o sangue cessa de
circular e os olhos ficam sem expressão? Sim, é isso, mas muito mais. Algo de
longe mais patético e trágico do que a dissolução física está contido no termo.
O salário do pecado é a morte espiritual.
O pecado separa de Deus, que é a fonte de toda vida. Isso foi manifestado no
Éden. Antes da Queda, Adão desfrutava de bendita companhia com seu Criador, mas
na própria véspera daquele dia que marcou a entrada do pecado em nosso mundo,
enquanto o Senhor Deus entrava no Jardim e sua voz era ouvida por nossos
primeiros pais, o par culpado escondeu-se entre as árvores do lugar.
Não mais poderiam eles gozar de comunhão
com ele que é sempre Luz, antes, ficaram alienados dele. Assim, também, se deu
com Caim: quando interrogado pelo Senhor ele disse: “Da tua face me esconderei”
(Gn 4.14). O pecado exclui da presença de Deus.
Essa foi a grande lição ensinada a Israel.
O trono de Jeová estava no meio deles, todavia não era mais acessível. Ele
habitava entre os querubins no santo dos santos e a esse ninguém poderia
chegar, com exceção do sumo sacerdote, e ele, apenas um dia por ano, levando
sangue consigo. O véu pendurado tanto no tabernáculo quanto no templo, vedando
o acesso ao trono divino, testemunhava o solene fato de que o pecado separa dele.
O salário do pecado é a morte, não somente
física, mas espiritual; não meramente natural mas, essencialmente, morte penal.
O que é morte física? É a separação da alma e do espírito do corpo. Assim, a
morte penal é a separação da alma e do espírito de Deus. A palavra da verdade
fala daquela que vive em prazer como “embora viva, está morta” (1Tm 5.6, ARA).
Repare, ainda, como a maravilhosa parábola do filho pródigo ilustra a força do
termo “morte”. Após o retorno do pródigo o pai disse: “Este meu filho estava
morto, e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado” (Lc 15.24). Enquanto ele
estava na “terra longínqua”, não havia cessado de existir; não, ele não estava
morto fisicamente, mas espiritualmente — estava alienado e separado de seu pai!
Agora, na cruz, o Senhor Jesus estava
recebendo o salário que era devido por seu povo. Ele não tinha pecado algum que
fosse seu, pois era o Santo de Deus. Mas estava levando nossos pecados em seu
próprio corpo no madeiro (1Pd 2.24). Ele tinha tomado o nosso lugar e estava
padecendo o Justo pelo injusto. Ele estava carregando o castigo que nos traz a
paz [5]; e o salário de nossos pecados, o
sofrimento e castigo que era devido a nós, era “morte”. Não meramente física,
mas penal; e, como dissemos, isso significava separação de Deus, e daí o
Salvador ter clamado: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Assim, também, será com aquele que for
impenitente até o fim. O pavoroso destino que aguarda o perdido é, dessa forma,
exposto: “os quais sofrerão, como castigo, a perdição eterna, banidos da face
do senhor e da glória do seu poder” (2Ts 1.9, ARA). Separação eterna daquele
que é a fonte de todo bem e a origem de toda bênção. Ao ímpio, Cristo dirá:
“Apartai-vos de mim, malditos” [6] — banimento de sua presença, um eterno
exílio de Deus, é o que espera o condenado eternamente. Essa é a razão por que
o Lago de Fogo — a eterna morada daqueles cujos nomes não estão escritos no
livro da vida — é designada “A Segunda Morte” (Ap 20.14). Não que haverá
extinção do ser, mas separação eterna do Senhor da Vida, uma separação a qual
Cristo sofreu por três horas enquanto estava pendurado no lugar do pecador. Na
cruz, então, Cristo recebeu o salário do pecado.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
2. Aqui vemos a absoluta santidade e a
inflexível justiça de Deus.
A tragédia do Calvário deve ser vista de
pelo menos quatro pontos de vista. Na cruz o homem fez uma obra: ele mostrou
sua depravação ao pegar o Perfeito e com “mãos iníquas” [7] pregando-o no madeiro. Na cruz Satanás
fez uma obra: ele manifestou sua insaciável inimizade contra a semente da
mulher ferindo o calcanhar dele.[8] Na cruz o Senhor Jesus fez uma obra:
morreu o Justo pelos injustos [9] para pudesse nos trazer a Deus. Na cruz
Deus fez uma obra: ele exibiu sua santidade e satisfez sua justiça derramando
sua ira sobre aquele que foi feito pecado por nós.
Que pena humana é capaz ou apropriada para
escrever acerca da imaculada santidade divina! Tão santo é Deus que o mortal não
pode vê-lo em seu ser essencial, e viver. Tão santo é Deus que os próprios céus
não são puros aos seus olhos.[10] Tão santo é Deus que até os serafins
cobriam suas faces com véus diante dele.[11] Tão santo é Deus que, quando Abraão ficou
de pé perante ele, clamou, “Sou pó e cinza” (Gn 18.27). Tão santo é Deus que,
quando Jó entrou em sua presença, disse: “Por isso me abomino” (Jó 42.6). Tão
santo é Deus que, quando Isaías teve uma visão de sua glória, exclamou: “Ai de
mim, que vou perecendo porque... os meus olhos viram o rei, o Senhor dos
Exércitos” (Is 6.5). Tão santo é Deus que, quando Daniel o contemplou numa
manifestação teofânica, declarou: “Não ficou força em mim; desfigurou-se a
feição do meu rosto” (Dn 10.8). Tão santo é Deus que nos é dito: “Tu és tão
puro de olhos que não podes ver o mal, e que não podes contemplar a
perversidade” (Hc 1.13). E foi porque o Salvador estava levando nossos pecados
que o trinamente santo Deus não o contemplou, virou sua face dele, abandonou-o.
O Senhor fez que se encontrasse em Jesus as iniqüidades de nós todos: e nossos
pecados estando sobre ele como nosso substituto, a ira divina contra as nossas
ofensas devesse passar sobre nossa oferta de pecado.
“Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” Essa era uma questão que nenhum daqueles ao redor da cruz podia
ter respondido; era uma questão que, ao mesmo tempo, nenhum dos apóstolos podia
ter respondido; sim, era uma questão que havia confundido os anjos no céu,
deixando-os sem resposta. Mas o Senhor Jesus havia respondido sua própria
questão, e sua resposta é achada no Salmo 22. Esse salmo fornecia a mais
maravilhosa predição profética de seus sofrimentos. Ele abre com as próprias
palavras da quarta elocução de nosso Salvador sobre a cruz, e é seguido por
mais soluços de agonia no mesmo tom até que, no versículo 3, achamo-lo dizendo
— “Tu és Santo”. Ele se queixa, não da injustiça, antes reconhece a retidão de
Deus — tu és santo e justo em cobrar de minhas mãos toda a dívida para a qual
me fiz fiador; tenho de responder pela totalidade dos pecados de todo meu povo
e, por conseguinte, ó Deus, és parte legítima em me golpear com tua espada
desperta. Tu és santo; tu és puro quando julgas.
Na cruz, então, como em nenhum outro
lugar, vemos a infinita malignidade do pecado e da justiça divina na punição
desse. Não foi o mundo antigo coberto pelas águas? Não foram Sodoma e Gomorra
destruídas por uma tempestade de fogo e enxofre? Não foram as pragas enviadas
sobre o Egito e Faraó e seus exércitos afogados no Mar Vermelho? Nesses casos,
o demérito do pecado e o ódio de Deus por ele puderam ser vistos; mas muito
mais o é aqui, em que Cristo é desamparado por ele. Vá ao Gólgota e veja o
Homem que é Companheiro de Jeová bebendo do copo da indignação do Pai,
castigado pela espada da justiça divina, ferido pelo próprio Senhor, sofrendo
até a morte, pois Deus “não poupou seu próprio Filho” [12] quando o pendurou no lugar do pecador.
Eis como a própria natureza antecipara a
terrível tragédia — o próprio contorno do chão se assemelha a um crânio. Eis a
terra tremendo sob a poderosa carga da ira despejada. Eis os céus e o sol
fugirem de uma tal cena, e a terra ser coberta de trevas. Aqui podemos ver a
pavorosa cólera de um Deus que vinga o pecado. Nem todos os relâmpagos do
julgamento divino que foram liberados nos tempos do Antigo Testamento, nem
todas as taças da ira que serão despejadas sobre uma Cristandade apóstata
durante os tempos sem paralelos da Grande Tribulação,[13] nem todo choro e lamento e ranger de
dentes dos condenados para sempre no Lago de Fogo jamais deram ou mesmo darão
uma tal demonstração da inflexível justiça de Deus e de sua inefável santidade,
de seu infinito ódio ao pecado, como o fez a ira divina que ardeu contra seu
próprio Filho na cruz. Porque estava sofrendo o horripilante julgamento do
pecado, foi desamparado por Deus. Aquele que era o Santo, cuja própria repulsa
ao pecado era infinita, que era a pureza encarnada (1Jo 3.3), [Deus] “o fez
pecado por nós” (2Co 5.21); portanto, ele se curvou mesmo perante a tempestade
de ira, na qual foi mostrado o desprazer divino contra os incontáveis pecados
de uma grande multidão que homem algum pode numerar. Essa, então, é a
verdadeira explicação do Calvário. O santo caráter de Deus não podia fazer nada
senão julgar o pecado, mesmo que fosse achado no próprio Cristo. Na cruz, pois,
a justiça divina foi satisfeita e sua santidade reivindicada.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
3. Vemos aqui a explicação do Getsêmane.
À medida que nosso bendito Senhor se
aproximava da cruz o horizonte para ele se escurecia mais e mais. Desde a mais
tenra infância ele havia sofrido por causa do homem; desde o princípio de seu
ministério público ele havia sofrido por causa de Satanás; porém, na cruz ele
devia sofrer na mão de Deus. O próprio Jeová devia ferir o Salvador, e era isso
que obscurecia tudo o mais. No Getsêmane ele adentrou na escuridão das três
horas de trevas na cruz. Eis o porquê de ele deixar os três discípulos nas
imediações do jardim, pois ele devia pisar o lagar sozinho. “A minha alma está
profundamente triste” [14], ele clamou. Isso não era recuar,
horrorizado, antecipando uma morte cruel. Não era o pensamento da traição por
seu próprio amigo com quem estava familiarizado, nem da deserção por seus
estimados discípulos na hora da crise, nem da expectativa das zombarias e
ultrajes, dos açoites e dos pregos, que oprimia sua alma. Não, toda essa
angústia da mais severa ao seu espírito sensível, nada era se comparada com a
que ele teve de suportar como Portador do Pecado.
“Então chegou Jesus com eles a um lugar
chamado Getsêmane, e disse aos seus discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto vou
além orar. E levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a
entristecer-se e a angustiar-se muito. Então lhes disse: A minha alma está cheia
de tristeza até à morte; ficai aqui, e velai comigo. E, indo um pouco mais para
diante, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se é
possível, passe de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como
tu queres.” (Mt 26.36-39).
Aqui ele observa as negras nuvens
surgindo, vê a terrível tempestade chegando, ele premeditava o inexprimível
horror daquelas três horas de trevas e tudo o que elas continham. “A minha alma
está profundamente triste”, ele clama. O grego é mais enfático. Ele estava
cercado de tristeza. Ele estava completamente imerso na ira divina. Todas as
faculdades e poderes de sua alma estavam esmagados pela angústia.
S. Marcos
emprega uma outra forma de expressão — “Ele começou a ficar extremamente
atônito” (14.33, KJV). O original traz o significado de a maior extremidade do
pavor, como a que faz com que alguém ficar de cabelo em pé e o corpo arrepiado.
E, acrescenta Marcos, “e a ficar muito triste”, o que denota que havia um total
abatimento de espírito; seu coração estava derretido como cera à vista do
terrível cálice.
Mas o
evangelista Lucas, dentre todos, é o que usa os termos mais fortes: “E, posto
em agonia, orava mais intensamente. E o seu suor tornou-se em grandes gotas de
sangue, que corriam até o chão” (Lc 22.44). A palavra grega para “agonia” aqui,
quer dizer estar envolvido em um combate. Antes, ele combatera as oposições dos
homens e as do diabo, mas agora ele encara o cálice que Deus lhe dá a beber.
Era o que continha a ira não diluída do ódio divino para com o pecado. Isso
explica o porquê dele dizer: “Se queres, passa de mim este cálice”. O “cálice”
é o símbolo de comunhão, e não poderia haver comunhão alguma em sua ira, mas
somente em seu amor [15]. Entretanto, ainda que isso significasse
ser cortado daquela, ele adiciona: “Todavia, não se faça a minha vontade, mas a
tua”. Todavia, tão grande foi sua agonia que “seu suor tornou-se em grandes
gotas de sangue, que corriam até o chão”.
Pensamos que
não pode haver a menor dúvida de que o Salvador verteu gotas de sangue de
verdade. Seria diminuir aí o significado dizer que seu suor parecia sangue, mas
não o era realmente. Parece-nos que a ênfase está posta na palavra “sangue”.
Ele verteu sangue — exatamente como grandes gotas de água comumente. E vemos
aqui a adequação do lugar escolhido para ser a cena desse terrível mas
preliminar sofrimento. Getsêmane — ah, teu nome te denuncia! Tem o sentido de
prensa de azeite. Era o lugar onde o sangue vital das olivas era extraído por
pressão gota a gota! O lugar escolhido foi bem nomeado, pois. Era de fato um
apropriado escabelo para a cruz, um escabelo de agonia inexprimível e sem
paralelos. Na cruz, então, Cristo tomou todo o cálice que lhe foi apresentado
no Getsêmane.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
4. Aqui vemos a inabalável fidelidade a
Deus do Salvador.
O abandono do Redentor por Deus era um
fato solene, e uma experiência que nada lhe deixava senão apoiar-se em sua fé.
A posição de nosso Salvador na cruz foi absolutamente singular. Isso pode ser
prontamente visto ao se contrastar suas próprias palavras faladas durante seu
ministério público com aquelas proferidas na própria cruz.
Antes dizia ele: “Eu bem sei que sempre me
ouves” (Jo 11.42); agora ele clama, “Deus meu, eu clamo de dia, e tu não me
ouves” (Sl 22.2)! Antes dizia ele: “E aquele que me enviou está comigo; o Pai
não me tem deixado só” (Jo 8.29); agora ele clama, “Deus meu, Deus meu, por que
me DESAMPARASTE?” Ele não tinha absolutamente nada agora em que descansar senão
o pacto e a promessa de seu Pai; e em seu clamor de angústia, sua fé se torna
manifesta. Foi um brado de aflição, mas não de desconfiança.
Deus havia se retirado dele, mas note como
sua alma ainda se apega a ele. Sua fé triunfou segurando-se em Deus mesmo em
meio às trevas. “Deus meu”, diz, “Deus meu”, tu com quem está a infinita e
perpétua força; tu que apoiaste até aqui minha humanidade e, conforme tua
promessa, sustentaste teu servo — Ó, não fiques longe de mim agora. Deus meu,
eu me apóio em ti. Quando todos os confortos visíveis e sensíveis haviam
desaparecido, da invisível proteção e refúgio de sua fé o Salvador se vale.
No salmo de número vinte e dois a
inabalável fidelidade do Salvador a Deus fica mais aparente. Nesse precioso
texto fala-se das profundezas de seu coração. Ouça-o:
Em ti confiaram nossos pais; confiaram, e
tu os livraste. A ti clamaram e escaparam; em ti confiaram, e não foram
confundidos. Mas eu sou verme, e não homem, opróbrio dos homens e desprezado do
povo. Todos os que me vêem zombam de mim, estendem os beiços e meneiam a
cabeça, dizendo: Confiou no Senhor, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer.
Mas tu és o que me tiraste do ventre, o que me preservaste estando ainda aos
seios de minha mãe. Sobre ti fui lançado desde a madre; tu és o meu Deus desde
o ventre de minha mãe. (Sl 22.4-10).
O próprio ponto em que seus inimigos
procuraram levantar contra ele foi a sua fé em Deus. Escarneceram dele por sua
confiança em Jeová — se ele realmente confiava no Senhor, o Senhor livrá-lo-ia.
Porém, o Salvador continuava confiando ainda que não houvesse livramento algum,
confiava ainda que desamparado por um período! Foi lançado sobre Deus desde o
ventre e ainda é lançado sobre ele na hora de sua morte. Ele prossegue:
Não te alongues de mim, pois a angústia está
perto, e não há quem ajude. Muitos touros me cercaram; fortes touros de Basã me
rodearam. Abriram contra mim suas bocas, como um leão que despedaça e que ruge.
Como água me derramei, e todos os meus ossos se desconjuntaram; o meu coração é
como cera, derreteu-se no meio das minhas entranhas. A minha força se secou
como um caco, e a língua se me pega ao paladar, e me puseste no pó da morte.
Pois me rodearam cães; o ajuntamento dos malfeitores me cercou,
transpassaram-se as minhas mãos e os pés. Poderia contar todos os meus ossos;
eles vêem e me contemplam. Repartem entre si os meus vestidos, e lançam sortes
sobre a minha túnica. Mas tu, Senhor, não te alongues de mim; força minha,
apressa-te em socorrer-me. Livra a minha alma da espada, e a minha predileta da
força do cão (Sl 22.11-20).
Jó tinha dito de Deus “Ainda que ele me
mate, nele esperarei” e, embora a ira divina contra o pecado repousasse sobre
Cristo, ele ainda confiava. Sim, sua fé fez mais do que confiar, ela triunfou —
“Salva-me da boca do leão, sim, ouve-me, desde as pontas dos unicórnios” (Sl
22.21).
Ó, que exemplo o Salvador deixou para o
seu povo! É relativamente fácil confiar em Deus quando brilha o sol, o teste
chega quando tudo está em escuridão. Mas uma fé que não confia em Deus na adversidade
tanto quanto na prosperidade não é a fé dos seus eleitos. Devemos ter fé por
que vivermos — fé de verdade — se a tivermos para por ela morrer. O Salvador
fora lançado sobre Deus desde a madre, fora lançado sobre Deus momento a
momento durante todos aqueles trinta e três anos, o que não é de se maravilhar,
então, que na hora da morte seja encontrado ainda lançado sobre Deus. Seus
companheiros cristãos podem estar tristes contigo, podes não mais contemplar a
luz da face divina. A Providência parece olhar com desdém para ti, entretanto,
ainda dizes, Eli, Eli, Deus meu, Deus meu.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
5. Aqui podemos ver a base da nossa
salvação.
Deus é santo e, por conseguinte, não
aceita ver pecado. Ele é justo e, portanto, julga o pecado em qualquer lugar
onde seja encontrado. Mas Deus também é amor: Ele se deleita na misericórdia e,
em conseqüência, a infinita sabedoria ideou um meio pelo qual a justiça pudesse
ser satisfeita e a misericórdia liberada para fluir aos culpados pecadores.
Esse meio foi o da substituição, o justo padecendo pelo injusto. O próprio
Filho de Deus foi o selecionado para ser o substituto, pois nenhum outro
satisfaria. Através de Naum, a questão fora feita: “Quem pode manter-se diante
do seu furor? e quem pode subsistir diante do ardor da sua ira?” (1.6, ARA).
Essa questão recebeu sua resposta na adorável pessoa de nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo. Só ele podia “manter-se”. Somente um podia levar a maldição e
ainda ressurgir como um vitorioso sobre ela. Somente um podia suportar toda a
ira vingativa e, todavia, glorificar a lei e torná-la digna de honra. Somente
um podia suportar que seu calcanhar fosse ferido por Satanás e contudo naquela
ferida destruir a ele, que tinha o poder da morte. Deus sustentou um que era
“poderoso” (Sl 89.19, ARA). Um que era ninguém menos que o Companheiro de
Jeová, o resplendor da sua glória, a expressa imagem de sua pessoa[16].
Desse modo, vemos que o amor ilimitado, a
justiça inflexível e o poder onipotente combinaram-se todos para tornar
possível a salvação daqueles que crêem.
Na cruz, todas as nossas iniqüidades foram
postas sobre Cristo e, portanto, o julgamento divino recaiu sobre ele. Não
havia nenhum meio de transferência de pecado sem também transferir sua pena. Tanto
o pecado quanto sua punição foram transferidos para o Senhor Jesus. Na cruz ele
estava fazendo propiciação, e propiciação é apenas para com Deus. Era uma
questão de ir de encontro aos reclames divinos de santidade; era uma questão de
satisfazer as exigências de sua justiça. Não só foi o sangue de Cristo vertido
por nós, mas também vertido para Deus: ele “se entregou a si mesmo por nós, em
oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave” (Ef 5.2). Dessa forma, isso foi
prefigurado na memorável noite da Páscoa no Egito: o sangue do cordeiro deve
estar onde o olho de Deus o possa ver — “Vendo eu sangue, passarei por cima de
vós”.[17]
A morte de Cristo na cruz foi uma morte
maldita: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós;
porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro” (Gl
3.13). A “maldição” é alienação de Deus. Isso fica evidente pelas palavras que
Cristo ainda dirá àqueles que estarão à sua esquerda no dia de seu poder —
“Apartai-vos de mim, malditos”, ele dirá (Mt 25.41). A maldição é desterro da
presença e glória divinas.
Isso explica o sentido de vários tipos do
Antigo Testamento. O boi que era morto anualmente no Dia da Expiação, após seu
sangue ter sido espargido sobre e diante do propiciatório, era removido para um
lugar “fora (exterior) do arraial” (Lv 16.27) e ali seu cadáver era queimado
por inteiro. Era no centro do acampamento que Deus tinha sua residência, e a
exclusão do acampamento significava banimento de sua presença. Assim também com
o leproso. “Todos os dias em que a praga estiver nele, será imundo; imundo
está, habitará só; a sua habitação será fora do arraial” (Lv 13.46) — isso
porque aquele era o tipo encarnado do pecador. Aqui, ainda, está o antítipo da
“serpente de bronze”. Por que Deus instruiu Moisés a colocar uma “serpente”
sobre uma haste, e ordenou aos israelitas mordidos para olhar para ela? [18] Imagine uma serpente como tipo de Cristo,
o Santo de Deus! Sim, mas ela representava-o como “[feito] maldição por nós”,
pois a serpente era a lembrança da maldição. Na cruz, então, Cristo estava
cumprindo esses símbolos do Antigo Testamento. Ele estava “fora do arraial”
(compare Hebreus 13.12) — separado da presença de Deus. Ele era o “leproso” —
feito pecado por nós. Ele era como a “serpente de bronze” — feito maldição por
nós. Daí, também, o profundo significado da coroa de espinhos — o símbolo da
maldição! Levantado, coroado de espinhos, para mostrar que estava levando a
maldição em nosso lugar.
Aqui, também, está a significação das três
horas de trevas que cobriram a terra como uma mortalha de morte. Era uma
escuridão sobrenatural. Não era noite, pois o sol estava em seu zênite. Como
bem o disse o Sr. Spurgeon, “Fez-se meia-noite ao meio-dia”. Não foi eclipse
algum. Os astrônomos competentes nos dizem que ao tempo da crucificação a lua
estava à sua maior distância do sol. Mas esse brado de Cristo dá o sentido das
trevas, enquanto que essas nos dão o significado daquele amargo brado. Somente
uma coisa pode explicar tal escuridão, visto que uma coisa apenas pode
interpretar tal clamor — que Cristo havia tomado o lugar dos culpados e
perdidos, que ele se pôs no lugar para levar os pecados, que ele estava
sofrendo o julgamento devido por seu povo, que ele que não conheceu pecado
“[Deus] o fez pecado” por nós. Aquele brado foi proferido para que a nós fosse
concedido saber do que se passava ali. Era a manifestação da expiação, por
assim dizer, pois três (três horas) é sempre o número de manifestação. Deus é
luz e as “trevas” é o sinal natural de sua repulsa. O Redentor foi deixado
sozinho com o pecado do pecador: tal era a explicação das três horas de
escuridão. Assim como repousará sobre o condenado eternamente uma dupla miséria
no lago de fogo, a saber, a dor do sentido e a dor da perda; do mesmo modo,
Cristo, em correspondência, sofreu a ira de Deus derramada sobre si e também o
afastamento de sua presença e comunhão.
Para o crente a cruz é interpretada em
Gálatas 2.20: “Estou crucificado com Cristo”. Ele foi o meu substituto; Deus
considera-me um com o Salvador. Sua morte foi a minha. Ele foi ferido por
minhas transgressões e ferido por minhas iniqüidades. O pecado não foi
afastado, mas descartado. Como disse alguém: “Porque Deus julgou o pecado sobre
o Filho, ele agora aceita o pecador crente no Filho”.
Nossa vida está escondida com Cristo em
Deus (Cl 3.3). Eu estou encerrado em Cristo porque Cristo foi excluído de Deus.
Ele sofreu em nosso lugar, ele salvou seu
povo assim; A maldição que caiu sobre sua cabeça, era por direito devida por
nós. A tempestade que curvou sua bendita cabeça, é apaziguada para sempre agora
E o descanso divino é meu no lugar, enquanto ele está coroado de glória. [19]
Aqui então está a base da nossa salvação.
Nossos pecados foram levados. As reivindicações divinas contra nós foram
plenamente satisfeitas. Cristo foi desamparado por Deus por um tempo para que pudéssemos
desfrutar da sua presença para sempre. “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” Que toda alma crente dê a resposta: ele adentrou as terríveis
trevas para que eu pudesse andar na luz; ele bebeu o cálice de angústia para
que eu pudesse beber o cálice de gozo; ele foi abandonado para que eu pudesse
ser perdoado!
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
6. Aqui vemos a suprema evidência do amor
de Cristo por nós.
“Ninguém tem maior amor do que este: de
dar alguém a sua vida pelos seus amigos” (Jo 15.13). Mas a grandeza do amor de
Cristo pode ser estimada somente quando estamos aptos a mensurar o que estava
envolvido nesse “dar” a sua vida. Como vimos, significava muito mais do que a morte física,
mesmo que essa fosse de indizível vergonha, e indescritível sofrimento.
Significava que ele tinha de tomar o nosso lugar e ser feito “pecado” por nós,
e o que isso envolvia só pode ser julgado à luz de sua pessoa.
Imagine uma mulher perfeitamente honrada e
virtuosa forçada a suportar, por algum tempo, a associação com o que há de mais
vil e impuro. Imagine-a encerrada num antro de iniqüidade, rodeada pelos mais
grosseiros dentre os homens e as mulheres, e sem nenhum meio de escape. Você
pode avaliar sua repulsa às blasfêmias de suas bocas sujas, à farra de
embriaguez, à obscenidade dos arredores? Você pode formar uma opinião do que
uma mulher pura sofreria em sua alma em meio a tal impureza? Mas a ilustração
é, de longe, falha, pois não há nenhuma mulher absolutamente pura. Honrada,
virtuosa, moralmente pura, sim, porém, pura no sentido de ser sem pecado,
espiritualmente pura, não. Mas Cristo era puro; absolutamente puro. Ele era o
Santo. Ele tinha uma infinita aversão ao pecado. Ele o aborrecia. Sua alma
santa se esquivava dele. Mas, na cruz, nossas iniqüidades foram todas postas
sobre ele, e o pecado — essa coisa vil — envolvia-se em torno dele como uma
horrível serpente enrolada. E, contudo, ele de bom grado sofreu por nós! Por
quê? Porque nos amou: “Como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os
até ao fim” (Jo 13.1).
Mas mais ainda: a grandeza do amor de
Cristo por nós pode ser avaliada apenas quando somos capazes de medir a ira
divina que foi derramada sobre ele. Era disso que sua alma se esquivava. O que
isso significou para ele, o que custou a ele, pode se saber em parte por um
minucioso exame dos salmos nos quais se nos permite ouvir algo de seus
patéticos solilóquios e petições a Deus. Falando com antecipação, o próprio
Senhor Jesus pelo Espírito clamou através de Davi:
“Livra-me, ó Deus, pois as
águas entraram até à minha alma. Atolei-me em profundo lamaçal, onde se não
pode estar em pé; entrei na profundeza das águas, onde a corrente me leva. Estou
cansado de clamar; secou-se-me a garganta; os meus olhos desfalecem esperando o
meu Deus.
Tira-me do lamaçal, e não me
deixes atolar; seja eu livre dos que me aborrecem, e das profundezas das águas.
Não me leve a corrente das águas e não me sorva o abismo, nem o poço cerre a
sua boca sobre mim.
E não escondas o teu rosto do
teu servo, porque estou angustiado; ouve-me depressa. Aproxima-te da minha
alma, e resgata-a; livra-me por causa dos meus inimigos. Bem conheces a minha
afronta, e a minha vergonha, e a minha confusão; diante de ti estão todos os
meus adversários. Afrontas me quebrantaram o coração, e estou fraquíssimo.
Esperei por alguém que tivesse compaixão, mas não houve nenhum; e por
consoladores, mas não os achei.” (Sl 69.1-3, 14, 15, 17-20)
E outra vez: “Um abismo chama outro
abismo, ao ruído das tuas catadupas; todas as tuas ondas e vagas têm passado
sobre mim” (Sl 42.7). A aversão divina ao pecado sobreveio impetuosa e rebentou
sobre o Portador do Pecado. Aguardando de modo expectante a terrível angústia
da cruz, ele clamou através de Jeremias: “Não vos comove isto a todos vós que
passais pelo caminho? Atendei, e vede, se há dor como a minha dor, que veio
sobre mim, com que me entristeceu o Senhor, no dia do furor da sua ira” (Lm
1.12). Essas são algumas das passagens que nos sugerem e pelas quais podemos julgar
o indizível horror com que o Santo contemplava aquelas três horas na cruz,
horas nas quais estava condensado o equivalente a uma eternidade no inferno. O
amado do Pai deve ter a luz da face de Deus ocultada dele; ele deve ser deixado
sozinho nas trevas exteriores.
Aqui tinha amor incomparável e
imensurável. “Se queres, passa de mim este cálice”, ele clamou. Mas não era
possível que seu povo fosse salvo a menos que ele bebesse até a última gota
daquele copo de desgraça e ira; e, porque não havia nenhum outro que podia
bebê-lo, ele o fez. Bendito seja seu nome! Onde o pecado havia trazido o homem,
o amor trouxe o Salvador.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
7. Aqui vemos a destruição da “esperança
maior”.
Esse clamor do Salvador prenuncia a
condição final de toda alma perdida —
abandonada por Deus! A fidelidade nos obriga a alertar o leitor acerca dos
falsos ensinos de hoje. É-nos dito que Deus ama a todos, e que ele é misericordioso
demais para em algum tempo levar a cabo as ameaças de sua palavra.
Exatamente como a antiga serpente
argumentou com Eva. Deus tinha dito: “No dia em que dela comeres, certamente
morrerás”. A serpente disse: “Certamente não morrereis”. Mas qual palavra evidenciou
ser verdadeira? Não a do diabo, pois ele é mentiroso desde o princípio [20]. A ameaça divina foi cumprida, e nossos
primeiros pais morreram espiritualmente no dia em que desobedeceram à sua ordem.
Isso se provará também num dia vindouro.
Deus é misericordioso; o fato dele ter
provido um Salvador, leitor, demonstra-o. O fato de que ele convida você para
receber a Cristo como seu Salvador evidencia sua misericórdia. O fato de que
ele é tão longânime com você, que suporta a sua obstinada rebelião até agora,
que prolongou o seu dia de graça até o presente momento, prova-o. Mas há um
limite para a sua misericórdia. O dia da misericórdia em breve findará. A porta
de esperança em breve será trancada. A morte pode rapidamente ceifar a ti, e
após essa vem “o juízo”.[21] E no Dia do Juízo Deus vai tratar com
justiça e não com misericórdia. Ele vingará a misericórdia da qual você
desdenhou. Ele executará a sentença de condenação já passada sobre você: “Quem
não crer será condenado” (Mc 16.16).
Não repetiremos novamente o que já
dissemos em detalhes; basta por ora lembrar o leitor mais uma vez como esse
brado de Cristo testemunha do ódio divino ao pecado. Porque é justo e santo,
Deus deve julgar o pecado onde quer que ele seja encontrado. Se então ele não
poupou o Senhor Jesus quando o pecado foi achado sobre ele, que esperança pode
haver, leitor não salvo, de que ele poupará a ti quando estiveres diante dele
no grande trono branco com pecado sobre ti? Se Deus derramou sua ira em Cristo
enquanto pendurado como fiador de seu povo, fique certo de que ele, com a mais
absoluta certeza, derrama-la-á sobre você, se morrer em seus pecados. A palavra
da verdade é explícita: “Aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira
de Deus sobre ele permanece” (Jo 3.36). Deus “não poupou” seu próprio Filho
quando tomou o lugar do pecador, e não poupará a quem rejeita o Salvador.
Cristo ficou separado de Deus por três horas, e se você finalmente rejeitá-lo
como seu Salvador, também o será, para sempre — “os quais sofrerão, como
castigo, a perdição eterna, banidos da face do senhor” (2Ts 1.9, ARA).
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
Eis aqui um Brado de Desolação — Leitor, possa você nunca
ecoá-lo.
Eis aqui um Brado de Separação — Leitor, possa você jamais
experimentá-lo.
Eis aqui um Brado de Expiação — Leitor, possa você apropriar-se
de suas virtudes salvíficas.
EXTRAÍDO DO LIVRO:
OS SETE BRADOS DO SALVADOR SOBRE A CRUZ.
ARTHUR W PINK
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