6. A PALAVRA DE VITÓRIA
João 19.30
“Está consumado”. Os antigos gregos
orgulhavam-se de serem capazes de dizer muita coisa falando pouco — “dar um mar
de assunto em uma gota de linguagem” era tido como a perfeição em oratória. O
que eles buscavam é encontrado aqui. “Está consumado”, no original, é apenas
uma palavra,[1] todavia, nessa palavra está contido o evangelho
de Deus; nessa palavra está contido o fundamento da segurança do crente; nessa
palavra é descoberta a essência de todo gozo, bem como o próprio espírito de
toda consolação divina.
“Está consumado”. Isso não foi o grito de
desespero de um mártir desamparado; não foi uma expressão de satisfação pelo
término de seus sofrimentos haver então chegado; não foi o último suspiro de
uma vida que se findava. Não, antes foi a declaração da parte do divino
Redentor de que tudo pelo qual ele viera do céu à terra para fazer, estava
agora feito; que tudo que era necessário para revelar o completo caráter de
Deus agora se tinha concluído; que tudo que era requerido pela lei antes que os
pecadores pudessem ser salvos tinha agora sido realizado: que o preço da nossa
escravidão foi pago para a nossa redenção.
“Está consumado”. O grande propósito
divino na história do homem era agora efetuado — efetuado de jure tanto quanto
ainda o será de facto. Desde o princípio, a intenção de Deus foi sempre uma e
indivisível. Foi declarada aos homens de várias maneiras: em símbolo e tipo,
por misteriosos sinais e por claras sugestões, mediante predição messiânica e
mediante declaração didática. Esse seu propósito pode ser assim resumido:
mostrar sua graça e engrandecer seu Filho criando filhos a sua própria imagem e
glória. E na cruz o fundamento que foi posto era para que isso se tornasse
possível e real.
“Está consumado”. O que está consumado? A resposta a tal questão é uma resposta mui abundante de significado, ainda que vários excelentes expositores procurem limitar o escopo de tais palavras e confiná-las estritamente a uma única aplicação. É-nos dito que foram consumadas as profecias que diziam respeito aos sofrimentos do Salvador, e que ele se referia apenas a isso. Admite-se de pronto que a referência imediata era às predições messiânicas, todavia, pensamos que há razões boas e suficientes para não confinar as palavras de nosso Senhor a elas. Sim, para nós parece certo que Cristo se referia especialmente à sua obra sacrificial, pois toda escritura acerca de seu sofrimento e vergonha não estava cumprida. Ainda restava entregar seu espírito nas mãos do Pai (Sl 31.5); ainda restava o “traspassar” com a lança (Zc 12.10: e repare que a palavra utilizada para o traspassar de suas mãos e pés — o ato de crucificação — no Sl 22.16 é diferente [2]); ainda restava serem seus ossos preservados sem quebra (Sl 34.20), e o enterro no sepulcro do homem rico (Is 53.9).
“Está consumado”. O que está consumado? A resposta a tal questão é uma resposta mui abundante de significado, ainda que vários excelentes expositores procurem limitar o escopo de tais palavras e confiná-las estritamente a uma única aplicação. É-nos dito que foram consumadas as profecias que diziam respeito aos sofrimentos do Salvador, e que ele se referia apenas a isso. Admite-se de pronto que a referência imediata era às predições messiânicas, todavia, pensamos que há razões boas e suficientes para não confinar as palavras de nosso Senhor a elas. Sim, para nós parece certo que Cristo se referia especialmente à sua obra sacrificial, pois toda escritura acerca de seu sofrimento e vergonha não estava cumprida. Ainda restava entregar seu espírito nas mãos do Pai (Sl 31.5); ainda restava o “traspassar” com a lança (Zc 12.10: e repare que a palavra utilizada para o traspassar de suas mãos e pés — o ato de crucificação — no Sl 22.16 é diferente [2]); ainda restava serem seus ossos preservados sem quebra (Sl 34.20), e o enterro no sepulcro do homem rico (Is 53.9).
“Está consumado”. O que estava consumado?
Respondemos, sua obra sacrificial. É verdade que havia ainda o ato da própria
morte, que era necessária para fazer a expiação. Porém, como se dá
freqüentemente no Evangelho de João — onde se encontra nosso texto — (cf. Jo
12.23,31; 13.31; 16.5; 17.4), o Senhor fala aqui antecipadamente da conclusão
de sua obra. Além disso, deve ser lembrado que as três horas de trevas já
haviam passado, o terrível cálice já havia sido sorvido até à última gota, seu
precioso sangue já tinha sido vertido, a ira divina derramada já havia sido
suportada; e esses são os principais elementos para se fazer a propiciação. A
obra sacrificial do Salvador, então, estava completada, com exceção apenas do
ato de morte que se seguiu imediatamente. Mas, como veremos, a consumação
daquela obra pôs fim a várias coisas, e a elas voltaremos a nossa atenção.
Esse é o pensamento imediato do contexto:
“Quando Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado” (Jo 19.30). Séculos antes,
os profetas de Deus tinham descrito passo a passo a humilhação e o sofrimento
por que o Salvador vindouro deveria passar. Uma por uma das profecias haviam
sido cumpridas, maravilhosamente cumpridas, cumpridas ao pé da letra. Havia
profecia que declarava que ele deveria vir da “semente da mulher” (Gn 3.15):
então, ele veio “nascido de mulher” (Gl 4.4). Havia profecia que anunciava que
sua mãe seria uma “virgem” (Is 7.14): então foi ela literalmente cumprida (Mt
1.18). Havia profecia que revelava que ele deveria ser da semente de Abraão (Gn
22.18): então, observe seu cumprimento (Mt 1.1). Havia profecia que fazia saber
que ele deveria ser da linhagem de Davi (2Sm 7.12,13): então tal se deu em
realidade (Rm 1.3). Havia profecia que dizia que ele receberia seu nome antes
de nascer (Is 49.1): então assim se sucedeu (Lc 1.30,31). Havia profecia que
previa que ele deveria nascer em Belém de Judá (Mq 5.2): observe então como
essa aldeia mesma foi de fato sua terra natal. Havia profecia que alertava de
antemão que seu nascimento acarretaria desgosto para outros (Jr 31.15): então,
contemple seu trágico cumprimento (Mt 2.16-18). Havia profecia que mostrava com
antecedência que o Messias deveria aparecer antes que o cetro da ascendência de
Judá sobre as demais tribos tivesse dela partido (Gn 49.10); então assim foi,
pois ainda que as dez tribos estivessem cativas, Judá ainda estava na terra na
época de seu advento. Havia profecia que aludia à fuga para o Egito e ao
subseqüente retorno para a Palestina (Os 11.1 e cf. Is 49.3,6): então, assim
aconteceu (Mt 2.14,15).
Havia profecia que fazia menção de um que
viria antes de Cristo para aprontar seu caminho (Ml 3.1): então, veja seu
cumprimento na pessoa de João Batista. Havia profecia que dava a conhecer que
no aparecimento do Messias “os olhos dos cegos serão abertos, e os ouvidos dos
surdos se abrirão. Então os coxos saltarão como cervos, e a língua dos mudos
cantará” (Is 35.5,6): então, leia de uma ponta a outra os quatro evangelhos e
veja de quão bendita maneira isso se provou verdadeiro. Havia profecia que
falava dele como “pobre e necessitado” (Sl 40.17 — vide início do salmo):
então, contemple-o não tendo onde reclinar a cabeça. Havia profecia que sugeria
que ele falaria em “parábolas” (Sl 78.2): então tal foi amiúde seu método de
ensino. Havia profecia que o representava acalmando a tempestade (Sl 107.29):
então, isso foi exatamente o que ele fez.[3] Havia profecia que proclamava sua
“entrada triunfal” em Jerusalém (Zc 9.9): então assim se sucedeu.
Havia profecia que anunciava que sua
pessoa deveria ser desprezada (Is 53.3); que ele deveria ser rejeitado pelos
judeus (Is 8.14); que ele deveria ser aborrecido “sem causa” (Sl 69.4): então,
é triste dizê-lo, tal foi precisamente o caso. Havia profecia que pintava o
quadro inteiro de sua degradação e crucificação — então, foi ele vividamente
reproduzido. Houvera a traição por um amigo íntimo, a deserção por seus
queridos discípulos, o ser levado ao matadouro, o ser levado a julgamento, o
aparecimento de falsas testemunhas contra si, a recusa de sua parte de se
defender, a demonstração de sua inocência, a condenação injusta, a pena de
morte sentenciada sobre si, o traspassamento literal de suas mãos e pés, o ser
contado entre os transgressores, a zombaria da multidão, o lançar sortes sobre
suas vestes — tudo predito séculos antes, e tudo cumprido ao pé da letra. A
última profecia de todas que ainda restava antes de encomendar seu espírito às
mãos do Pai tinha agora sido cumprida. Ele clamou, “Tenho sede”, e após o
oferecimento de vinagre e fel tudo estava agora “concluído”; e, quando o Senhor
Jesus reviu o inteiro escopo da palavra profética e viu sua completa
realização, ele bradou, “Está consumado”!
Somente nos resta assinalar que, enquanto
houve um grupo todo de profecias que tinha de se dar no primeiro advento do
Salvador, assim também há um outro que tem de acontecer em seu segundo advento
— o último, tão definido, pessoal e completo em seu escopo quanto o primeiro.
Assim como vemos o real cumprimento daquelas que tinham de ocorrer em sua
primeira vinda à terra, também podemos aguardar com absoluta confiança e
segurança o cumprimento daquelas que terão lugar em sua segunda vinda. E, como
vimos que o primeiro grupo de profecias foi cumprido literal, real e
pessoalmente [4], também devemos esperar que o último o
seja. Admitir o cumprimento literal do primeiro, e então procurar
espiritualizar e simbolizar o último, é não apenas grosseiramente inconsistente
e ilógico, mas altamente pernicioso para nós e profundamente desonroso a Deus e
à sua palavra.
E qual língua ou pena pode descrever os
sofrimentos do Salvador? Ó, que angústia inexprimível, física, mental e
espiritual que ele suportou! Apropriadamente foi ele designado “o Homem de
Dores”. Sofrimentos nas mãos dos homens, nas mãos de Satanás e nas mãos de
Deus. Dor infligida tanto pelos inimigos quanto pelos amigos. Desde o início
ele caminhou entre as sombras que a cruz lançava de través sobre seus passos.
Ouça seu lamento: “Estou aflito e prestes a morrer desde a minha mocidade” (Sl
88.15). Que luz isso lança sobre seus primeiros anos! Quem pode dizer quanto
está contido nessas palavras? Para nós, um véu impenetrável está lançado sobre
o futuro; nenhum de nós sabe o que um dia pode causar. Mas o Salvador conhecia
o fim desde o começo!
Alguém apenas precisa ler os evangelhos
para saber como a terrível cruz esteve sempre perante ele.
Nas bodas de Cana, onde tudo era alegria e
divertimento, ele faz solene referência à sua “hora” que ainda não viera.[5] Quando Nicodemos o entrevistou à noite, o
Salvador aludiu ao levantamento do Filho do homem.[6] Quando Tiago e João vieram lhe pedir dois
lugares de honra em seu reino vindouro, ele fez menção ao “cálice” que ele
tinha de tomar e ao “batismo” com que deveria ele ser batizado.[7]
Quando Pedro confessou que ele era o
Cristo, o Filho do Deus vivo, ele voltou-se para os seus discípulos e começou a
lhes mostrar “que convinha ir a Jerusalém, e padecer muito dos anciãos, e dos
principais dos sacerdotes, e dos escribas, e ser morto, e ressuscitar ao
terceiro dia” (Mt 16.21). Quando Moisés e Elias ficaram diante dele no monte da
transfiguração, foi para falar “da sua morte, a qual havia de cumprir-se em Jerusalém”.
Se é verdade que somos bem incapazes de
avaliar os sofrimentos de Cristo devido à antecipação da cruz, menos ainda
podemos sondar a pavorosa realidade da própria. Os sofrimentos físicos foram
excruciantes, mas mesmo isso foi como nada se comparado com sua angústia de
alma. Para uma consideração de tais sofrimentos já dedicamos vários parágrafos
nos capítulos anteriores, todavia não nos desculpamos em nada em retornar a
eles novamente. Não é demasiado de nossa parte poder contemplar com freqüência
o que o Salvador suportou a fim de assegurar a salvação para nós. Quanto mais
estivermos familiarizados com seus sofrimentos, e quanto mais amiúde meditarmos
neles, mais caloroso será nosso amor e mais profunda a nossa gratidão.
Finalmente as últimas horas chegaram.
Tinha havido a terrível experiência no Getsêmane seguida pelos comparecimentos
perante Caifás, perante Pilatos, perante Herodes e novamente perante Pilatos.
Tinha havido o açoitamento e o escárnio por parte dos soldados brutais; a
jornada ao Calvário; a fixação de suas mãos e pés por pregos ao cruel madeiro.
Tinha havido a injúria dos sacerdotes, do povo e dos dois ladrões com ele
crucificados. Tinha havido a total indiferença de uma turba vulgar, dentre a
qual ninguém houve que “tivesse compaixão” e que dissesse uma palavra de consolo
(Sl 69.20). Tinha havido a apavorante escuridão que lhe ocultou a face do Pai,
que arrancou dele o amargo clamor, “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” Tinha havido os lábios ressecados que tiraram dele a exclamação,
“Tenho sede”. Tinha havido o horrendo conflito com o poder das trevas enquanto
a serpente “feria” seu calcanhar. Bem podia o padecente perguntar, “Não vos
comove isto a todos vós que passais pelo caminho? atendei, e vede, se há dor
como a minha dor, que veio sobre mim, com que me entristeceu o Senhor, no dia
do furor da sua ira” (Lm 1.12).
Mas agora o sofrimento está findo. Aquilo
a que sua santa alma recuava está acabado. O Senhor o tinha ferido; o homem e o
diabo tinham feito o pior que podiam fazer. O cálice foi completamente bebido.
A terrível tempestade da ira de Deus tinha acabado de passar. As trevas estão
terminadas. A espada da justiça divina está embainhada. O salário do pecado
tinha sido pago. As profecias acerca de seu sofrimento estavam todas cumpridas.
A cruz tinha sido “suportada”. A santidade divina tinha sido plenamente
satisfeita. Com um brado de triunfo — um forte brado, um brado que reverberou
de uma extremidade a outra do universo — o Salvador exclama, “Está consumado”.
A ignomínia e a vergonha, o sofrimento e a agonia são passado. Nunca mais ele
experimentará dor. Nunca mais ele suportará a contradição de pecadores contra
si mesmo. Nunca mais estará ele nas mãos de Satanás. Nunca mais a luz do
semblante de Deus ficará ocultada dele. Bendito seja Deus, tudo está terminado!
O mais alto lugar do Céu é Seu, é Seu por direito,
O Rei dos reis e Senhor dos senhores, e a eterna Luz do Céu.
O gozo de todos os que habitam encima, o Gozo de todos embaixo,
Àqueles a que ele manifesta seu amor, e concede que conheçam seu nome.[8]
A Escritura indica que há uma obra especial
peculiar a cada uma das pessoas divinas, ainda que, como as pessoas mesmas, não
é sempre fácil distinguir entre suas respectivas obras. Deus Pai está
especialmente envolvido no governo do mundo. Ele governa sobre todas as obras
de suas mãos. Deus Filho está especialmente envolvido na obra redentora: ele
foi quem veio aqui para morrer pelos pecadores. Deus Espírito está
especialmente envolvido com as escrituras: ele foi quem moveu os santos homens
de outrora para falarem as mensagens de Deus,[9] assim como é quem agora dá iluminação
espiritual e entendimento,[10] e guia na verdade.[11] Mas é com a obra de Deus Filho que
estamos aqui particularmente interessados.
Antes que o Senhor Jesus viesse a essa
terra uma obra definida foi confiada a ele. No princípio do livro isso foi
escrito por ele, e ele veio a fazer a vontade registrada de Deus.[12]
Mesmo quando garoto de doze anos, os
“negócios” do Pai estavam diante de seu coração e ocupavam a sua atenção. Outra
vez, em João 5.36, encontramo-lo dizendo: “Mas eu tenho maior testemunho do que
o de João; porque as obras que o Pai me deu para realizar, as mesmas obras que
eu faço”. E, na última noite antes de sua morte, naquela maravilhosa oração
sacerdotal, descobrimo-lo falando: “Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado
a obra que me deste a fazer” (Jo 17.4).
Em seu livro sobre os sete ditos de Cristo
na cruz, o Dr. Anderson-Berry lança mão de uma ilustração da história a qual,
por sua contundente antítese, revela o sentido e a glória da obra completa de
Cristo. Isabel, Rainha da Inglaterra, o ídolo da sociedade e a líder da alta
sociedade européia, quando em seu leito de morte, voltou-se para a sua dama de
companhia e disse: “Ó, meu Deus! Está acabado. Chego ao fim disso — o fim, o
fim. Ter somente uma vida e acabado com ela! Ter vivido, e amado, e triunfado;
e agora saber que está terminado. Pode-se desafiar tudo o mais, menos isso”. E,
enquanto a ouvinte assistia a isso sentada, poucos momentos depois, a face cujo
sorriso mais leve trouxera seus cortesãos aos seus pés, tornava-se numa máscara
de argila sem vida, e retribuía a ansiosa contemplação de sua serva com nada
mais do que um fixo olhar vazio. Tal foi o fim de alguém cuja meteórica
carreira fora invejada por metade do mundo. Não podia ser dito que ela “consumara”
alguma coisa, pois consigo tudo foi “vaidade e aflição de espírito”. Quão
diferente foi o fim do Salvador — “Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado
a obra que me deste a fazer”.
A missão na qual Deus enviou seu Filho ao
mundo estava agora acabada. Na realidade, não foi terminada até que desse seu
último suspiro, mas a morte viria em instantes e, antecipando-se a isso, ele
brada, “Está consumado”. A difícil obra está feita. A tarefa divinamente dada a
ele está executada. Uma obra mais digna de honra e mais importante do que
qualquer outra jamais confiada ao homem ou aos anjos estava completada. Aquilo
por que deixara a glória celeste, aquilo pelo qual ele tomara sobre si a forma
de servo, aquilo pelo qual ele havia permanecido na terra por trinta e três
anos para fazer, estava agora consumado. Nada mais tinha para ser adicionado. A
meta da Encarnação é atingida. Com que jubiloso triunfo ele aqui deve ter visto
a árdua e custosa obra que lhe foi entregue agora aperfeiçoada!
“Está consumado”. A missão na qual Deus
enviara seu Filho ao mundo estava acabada. Aquilo que fora tencionado na
eternidade viera a suceder. O plano de Deus fora plenamente levado a cabo. É
verdade que o Salvador fora morto e crucificado “por mãos de iníquos”, todavia,
foi “entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus” (At 2.23, ARA).
É verdade que os reis da terra se levantaram, e os príncipes se ajuntaram
contra o Senhor, e contra o seu Cristo [13]; entretanto, não foi senão para fazer o
que a mão e o conselho de Deus “tinham anteriormente determinado que se havia
de fazer” (At 4.28). Por que ele é o Altíssimo, não se pode frustrar a secreta
vontade de Deus. Por que ele é supremo, o conselho de Deus deve ficar de pé.
Por que ele é o TodoPoderoso, o propósito de Deus não pode ser malogrado.
Repetidas vezes as escrituras insistem na irresistibilidade do desejo do Senhor
Deus. Por que sua verdade é agora tão geralmente posta em discussão,[14] acrescentamos sete passagens que a
afirmam:
Mas, se ele resolveu alguma
cousa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará (Jó 23.13, ARA).
Bem sei eu que tudo podes, e
nenhum dos teus pensamentos pode ser impedido (Jó 42.2).
Mas o nosso Deus está nos
céus; faz tudo o que lhe apraz (Sl 115.3). Não há sabedoria, nem inteligência,
nem conselho contra o Senhor (Pv 21.30).
Porque o Senhor dos Exércitos
o determinou; quem pois o invalidará? E a sua mão estendida está; quem pois a
fará voltar atrás? (Is 14.27).
E todos os moradores da terra são reputados
em nada; e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores
da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes? (Dn
4.35).
E, no brado triunfante do Salvador — “Está
consumado” — temos uma profecia e um penhor da execução definitiva do plano de
Deus de modo completo e irresistível. No fim dos tempos, quando tudo estiver
terminado, e o propósito divino for plenamente consumado, quando tudo que ele
predeterminou que devesse ser feito estiver cumprido, então será dito
novamente: “Está consumado”.
Falamos acima de Cristo alcançando a meta
da Encarnação, e da consumação de sua missão na terra; o que foram tal meta e
tal missão, a escritura claramente revela. O Filho do Homem veio aqui “para
buscar e salvar o que se havia perdido” (Lc 19.10). Cristo Jesus entrou no
mundo “para salvar os pecadores” (1Tm 1.15). Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher, “para remir os que estavam debaixo da lei” (Gl 4.4). Ele foi
manifestado “para tirar os nossos pecados” (1Jo 3.5). E tudo isso envolvia a
cruz. O “perdido” que ele veio buscar só podia ser encontrado lá — no lugar de
morte e sob a condenação divina. Os pecadores podiam ser “salvos” somente por
alguém tomando seu lugar e levando suas iniqüidades. Aqueles que estavam sob a
lei apenas podiam ser “remidos” por um outro que cumprisse suas exigências e
sofresse sua maldição. Nossos pecados somente podiam ser “tirados” sendo
apagados pelo precioso sangue de Cristo. As demandas da justiça têm que ser
satisfeitas: as exigências da santidade divina têm que ser atendidas: o
terrível débito em que incorremos tem que ser pago. E na cruz isso foi feito;
feito por ninguém menos que o Filho de Deus; feito com perfeição; feito de uma
vez por todas.
“Está consumado”. Aquilo para o qual
tantos tipos apontavam, aquilo para o qual tanta coisa do tabernáculo e de seu
ritual prefigurava, aquilo do qual tantos dos profetas de Deus tinham falado,
estava agora realizado. Uma cobertura para o pecado e sua vergonha — tipificada
pelas túnicas de peles com as quais o Senhor Deus vestiu nossos primeiros pais [15] — foi agora fornecida. O mais excelente
sacrifício — tipificado pelo cordeiro de Abel [16] — fora agora oferecido. Um abrigo para a
tempestade do julgamento divino — tipificado pela arca de Noé [17] — era agora providenciado. O Filho
unigênito e mui amado — tipificado pelo oferecimento de Isaque por Abraão [18] — já havia sido posto sobre o altar. Uma
proteção contra o anjo vingador — tipificada pelo sangue derramado do cordeiro
pascal [19] — era agora suprida. Uma cura para a
mordida da serpente — tipificada pela serpente de bronze sobre a haste [20] — era agora aprontada para os pecadores.
A provisão de uma fonte que dá vida — tipificada pelo golpear de Moisés na
rocha [21] — era agora efetuada.
Deus fornece ao menos quatro provas de que
Cristo terminou sim sua obra a qual lhe foi dada para fazer. Primeiro, no
rasgar do véu,[22] que mostrava que o caminho para Deus
estava agora aberto.
Segundo, no ressurgir de Cristo dentre os
mortos, que provou que Deus aceitara seu sacrifício.
Terceiro, na exaltação de Cristo a sua
própria destra, [23] o que demonstrou o valor da sua obra e o deleite
do Pai em sua pessoa. Quarto, no envio à terra do Espírito Santo para aplicar
as virtudes e benefícios da morte expiatória de Cristo.[24]
Sobre a morte de um outro, sobre a vida de um outro
Eu lanço minh’alma eternamente
Com ousadia ficarei de pé naquele grande dia,
Pois quem pode lançar sobre mim alguma acusação?
Completamente absolvido por Cristo estou,
Da tremenda maldição do pecado e da culpa.[25]
Os pecados do crente — todos os seus —
foram transferidos ao Salvador. Como diz a escritura: “O Senhor fez cair sobre
ele a iniqüidade de nós todos” (Is 53.6). Se Deus pois lançou minhas
iniqüidades sobre Cristo, não mais estão elas sobre mim. Há pecado em mim, pois
a velha natureza adâmica permanece no crente até a morte ou até o retorno de
Cristo, caso ele venha antes que eu morra, porém, não há mais pecado algum
sobre mim. Tal distinção entre pecado EM e pecado SOBRE é uma distinção vital,
e deve haver pouca dificuldade em sua apreensão. Se eu dissesse que o juiz deu
a sentença sobre um criminoso, e que esse está agora sob sentença de morte,
todos entenderiam o que eu quis dizer. Da mesma forma, todos fora de Cristo tem
a sentença da condenação divina que repousa sobre si. Porém, quando um pecador
crê no Senhor, recebe-o como seu Senhor e Mestre, ele não mais está “sob
condenação” — o pecado não mais está sobre si, ou seja, a culpa, a condenação,
a pena do pecado, não mais está sobre ele. E por quê? Porque Cristo levou
nossos pecados em seu próprio corpo sobre o madeiro (1Pd 2.24). A culpa, a
condenação e a pena de nossos pecados foram transferidas ao nosso substituto.
Em conseqüência, porque meus pecados foram transferidos a Cristo, eles não mais
estão sobre mim.
Essa preciosa verdade foi contundentemente
ilustrada nos tempos do Antigo Testamento em conexão com o Dia Anual da
Expiação em Israel. Naquele dia, Arão, o sumo-sacerdote (um tipo de Cristo),
dava satisfação a Deus pelos pecados que Israel cometera durante o ano
anterior. A maneira como isso era feito está descrita em Levítico 16. Dois
bodes eram tomados e apresentados diante de Deus à porta do tabernáculo: isso
era antes que qualquer coisa fosse feita com eles: isso representava Cristo
apresentando-se a Deus, oferecendo para entrar neste mundo, e ser o Salvador dos
pecadores. Um dos bodes era então escolhido e morto, e seu sangue era levado
para dentro do tabernáculo, no interior do véu, no Santo dos Santos e, ali, era
espargido perante e sobre o propiciatório — prefigurando a Cristo oferecendo-se
como um sacrifício a Deus, para satisfazer às exigências de sua justiça e aos
requerimentos de sua santidade.
Lemos então que Arão saía do tabernáculo e
punha ambas as mãos sobre a cabeça do segundo bode (vivo) — significando um ato
de identificação pelo qual ele, o representante de toda a nação, identificava o
povo com o animal, reconhecendo que seu destino era o que seus pecados
mereciam, e que, hoje, corresponde às mãos da fé, segurando Cristo e
identificando a nós mesmos consigo em sua morte. Tendo posto suas mãos na
cabeça do bode vivo, Arão agora confessava sobre ele “todas as iniqüidades dos
filhos de Israel, e todas as suas transgressões, segundo todos os seus pecados,
e os porá sobre a cabeça do bode” (Lv 16.21). Desse modo, os pecados de Israel
eram transferidos ao seu substituto. Finalmente se nos diz: “Assim aquele bode
levará sobre si todas as iniqüidades deles à terra solitária; e enviará o bode
ao deserto” (Lv 16.22). O bode que carregava os pecados de Israel era
introduzido num ermo inabitado, e o povo de Deus não mais via, nem ele nem seus
pecados! Tipificando, isso era Cristo introduzindo nossos pecados em uma terra
desolada onde Deus não estava, e ali dando um fim a eles. A cruz de Cristo,
pois, é o túmulo de nossos pecados!
“A lei é santa, e o mandamento santo,
justo e bom” (Rm 7.12). Como poderia ela ser menos que isso, já que o próprio
Jeová a tinha ideado e dado! A culpa não estava na lei, mas no homem que, sendo
depravado e pecador, não a podia guardar. Todavia, aquela lei tem que ser
guardada, e guardada por um homem, de modo que a lei pudesse ser honrada e
exaltada, e justificado aquele que a deu. Por conseguinte, lemos: “Porquanto o
que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando
o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na
carne; para que a justiça da lei se cumprisse em (não “por”) nós, que não
andamos segundo a carne, mas segundo o espírito” (Rm 8.3,4). A “enfermidade”
aqui é aquela do homem caído. O envio do Filho de Deus na semelhança da carne
do pecado (grego, corretamente traduzido pela versão Almeida Revista e
Corrigida) refere-se à Encarnação: como lemos em uma outra escritura, “Deus
enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que
estavam sob a lei” (Gl 4.4,5 ARA). Sim, o Salvador nasceu “sob a lei”, nasceu
sob ela para que pudesse guardá-la perfeitamente em pensamento, palavra e
obras. “Não cuideis que vim destruir a lei, ou os profetas: não vim abrogar,
mas cumprir” (Mt 5.17); essa foi sua pretensão.
Mas não apenas o Salvador guardou os
preceitos da lei, ele também sofreu sua pena e suportou sua maldição. Nós a
tínhamos quebrado e, tomando nosso lugar, ele deve receber sua justa sentença.
Tendo recebido sua pena e sofrido sua maldição, as exigências da lei são completamente
atendidas e a justiça é satisfeita. Por conseguinte, está escrito a respeito
dos crentes: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por
nós” (Gl 3.13). E outra vez: “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo
aquele que crê” (Rm 10.4). E outra vez ainda: “Pois não estais debaixo da lei,
mas debaixo da graça” (Rm 6.14).
Amaldiçoados pela lei e mortos pela queda,
A graça nos redimiu de uma vez por todas.[26]
“Está consumado”
7. Aqui vemos a destruição do poder de
Satanás.
Veja-o pela fé. A cruz foi o presságio de
morte do poder do diabo. Às aparências humanas parecia o momento de seu maior
triunfo, todavia, na realidade foi a hora de sua derrota definitiva. Em virtude
da cruz (vide contexto) o Salvador declarou, “Agora é o juízo deste mundo;
agora será expulso o príncipe deste mundo” (Jo 12.31). É verdade que Satanás
não foi ainda acorrentado e lançado no abismo,[27] entretanto, a sentença foi dada (ainda
que não executada); seu fim é certo; e seu poder já está quebrado no que diz
respeito aos crentes.
Para o cristão, o diabo é um inimigo
vencido. Ele foi derrotado por Cristo na cruz — “para que pela morte
aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo” (Hb 2.14). Os
crentes já foram tirados “da potestade das trevas” e transportados para o reino
do Filho do amor de Deus (Cl 1.13). Satanás, então, deve ser tratado como um
inimigo derrotado. Ele não mais tem qualquer reivindicação legítima sobre nós.
Outrora éramos seus “cativos” por lei, mas Cristo nos livrou. Outrora andávamos
“segundo o príncipe das potestades do ar”;[28] mas agora temos de seguir o exemplo que
Cristo nos deixou. Outrora Satanás “operava em nós”; mas agora Deus é quem
opera em nós tanto o querer quanto o efetuar, segundo sua boa vontade.[29] Tudo o que temos de fazer é “resistir ao
diabo”, e a promessa é que “ele fugirá de vós” (Tg 4.7).
“Está consumado”. Aqui estava a resposta
triunfante à cólera do homem e à inimizade de Satanás. Ela conta a perfeita
obra que vai de encontro ao pecado no lugar do julgamento. Tudo estava
completado exatamente como Deus queria tê-lo, como os profetas haviam predito,
como o cerimonial do Antigo Testamento prefigurava, como a santidade divina
requeria, e como os pecadores necessitavam. Quão contundentemente apropriado é
que esse sexto brado do Salvador na cruz seja encontrado no evangelho de João —
o evangelho que mostra a glória da deidade de Cristo! Ele aqui não encomenda sua
obra à aprovação divina, mas sela-a com o seu próprio imprimatur, atestando-a como
completa, e dando-lhe a todo-suficiente sanção de sua própria aprovação. Nenhum
outro além do Filho de Deus diz “ESTÁ consumado” — quem pois ousa duvidar ou
questionar?
“Está consumado”. Você realmente crê
nisso? Ou está se esforçando para acrescentar algo seu mesmo a ele e assim
merecer o favor divino? Há alguns anos atrás, um fazendeiro cristão estava profundamente
preocupado com um carpinteiro não salvo. Ele procurou pôr diante de seu vizinho
o evangelho da graça de Deus, e explicar como que a obra completa de Cristo foi
suficiente para sua alma nela descansar. Porém, o carpinteiro persistia na
crença de que ele mesmo tem que fazer algo. Um dia, o fazendeiro pediu a esse
para lhe fazer um portão, e quando o portão estava pronto ele o transportou
para a sua carroça. Ele ordenou ao carpinteiro que o visitasse no dia seguinte
de manhã e visse o portão quando levantado no campo. Na hora marcada o
carpinteiro chegou e ficou surpreso ao descobrir o fazendeiro lá perto com um
afiado machado em sua mão. “O que você vai fazer?”, ele perguntou. “Vou fazer
alguns cortes e dar uns golpes em sua obra”, foi a resposta. “Mas não há necessidade
alguma disso”, respondeu o carpinteiro, “o portão está todo certo assim. Fiz
tudo que era necessário”. O fazendeiro não prestou atenção a isso mas, erguendo
seu machado, deu talhos e cortes no portão até ficar completamente inutilizado.
“Veja o que você fez!”, gritou o carpinteiro. “Você arruinou meu trabalho!”
“Sim”, disse o fazendeiro, “e isso é exatamente o que você está tentando fazer.
Você está procurando anular a obra
completa de Cristo com seus miseráveis acréscimos a ela!” Deus utilizou essa
lição com o vigoroso objeto para mostrar ao carpinteiro seu engano, e esse foi
levado a se lançar em fé sobre o que Cristo tem feito pelos pecadores. Leitor,
você quer fazer o mesmo?
EXTRAÍDO DO LIVRO;
OS SETE BRADOS DO SAVADOR SOBRE A CRUZ
ARTHUR W PINK
EXTRAÍDO DO LIVRO;
OS SETE BRADOS DO SAVADOR SOBRE A CRUZ
ARTHUR W PINK
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